domingo, 7 de fevereiro de 2010

Figuras que Passam


Escrevi a um tempo uma das poesias deste autor paraense, e revirando algus papeis encontrei essa homenagem feita ao mesmo, por um de seus amigos das letras.

Naquella época, de actividade para as lettras pátrias, um grupo de alumnos do Lyceu Paraense ensaiava o vôo nos domínios da phantasia, no verso e na prosa.

As balladilhas e os contos, as criticas, chonicras, os artigos de todo o gênero, e principalmente os sonetos estufavam as primeiras paginas das gazetas locaes, procurando reproduzir as correntes literárias, que imprimiam direção nova ao pensamento dos homens cultos e influíam de modo effectivo no gosto da geração contemporânea.

Chegavam por nós, ao mesmo tempo, a preocupação, o apuro de Flaubert, nos tecidos de vestir a Idea, e o cuidado doentio nas particularidades em que se derramara a prodigiosa faculdade descriptiva de Emilio Zola.

Os nomes mais representativos do parnasianismo em França, Portugal e o Brasil, eram de nosso comercio espiritual quotidiano. Convivíamos com Gauthier, Coppée, Claretie, Gonçalves Crespo e João Penha, tanto quanto com Luiz Guimarães Junior, Bilac, Alberto de Oliveira, Raymundo Correa e outros.

E a thebaida desses jovens sonhadores ficava no mesmo edifício do Lyceu, nas estreitas salas em que se apertavam as estantes da Biblioteca Publica, de tal forma que alguns milhares de livros só encontravam posição, empilhados pelo assoalho, extripados uns, e outros crivados de orifícios pela maldade inconsciente das traças. Chamavam-se eles Arthur Vianna, Alcides Bahia, Arthur Pacheco, Euclydes Dias, Bandeira de Albuquerque e alguns mais.

Separado, porém, deste grupo, encerrado no seu quarto de preparatório, que distava pouco do estabelecimento publico referido, procurava assimilar a maneira e a forma de Catulle Mendes, um mocinho bisonho, de cabeça desenvolvida, largo nariz cavalgado por petulante pincenez. Era Agostinho Vianna. O seu primeiro trabalho, estampado no Democrata, onde nos acoroçoava a benevolência amável do mestre querido, que era o Dr. Américo Santa Rosa, o respeitável velho Américo, de todos os seus discípulos encantou-me.

Não era imitação servil: possuía já uns traços de individualidade própria e, sobretudo, deixava prever um escritor digno de estima, pela maleabilidade da forma, adaptável ao thema versado.

Rithimava os seus períodos, e, se perpetrou sonetos, não deixou que ate nos chegasse o conhecimento de sua fraqueza, ou condescendência com a juventude inconseqüente...

“Loira, muito loira, como os trigais de Panville”, não sei se real, era a imagem que descantava, nuns períodos tratados com desvello, de certo refolhudos, mas muito próprios da edade das ilusões e dos sonhos.

Defluia, assim, o ano de 1893, e é quando outra surpresa me apanha, produzida pelo mesmo Agostinho Vianna.

Por ocasião da revolta da armada, elle começou a revelar-se um noticiarista attraente, capaz de se impor a atenção geral. Sobre assuntos velhos bordava trechos novos, realçava circunstâncias, refundindo-os completamente. Naquella quadra de parcimoniosa informação telegráfica, tão pouco fazia ella parte de nossos hábitos de jornalista, Agostinho Vianna deparava meios de offerecer dados sobre a revolta, que os próprios jornais do sul recebiam e adotavam alviçareiramente, a fim de os transmitirem aos seus leitores...

Coincidia quase com o termo de sua jornada pelo Lyceu a revelação desses dotes notáveis e imprescindíveis em qualquer folha moderna, e teve que os deixar sem exercício, emquanto partia com destino ao Rio para fazer o curso odontológico. È preciso notar que os trabalhos de pena, não eram de molde a desviar a sua atenção dos livros. E desse jeito, forma bem estudados os preparatórios, e o seu curso de odontologia foi feito com aproveitamento e brilhantismo.

Conhecendo-o tão bem, quando daqui partiu, em 1884, macambusio, mettido em largos e compridos casacos, andando apressado, tendo a cabeça sempre ligeiramente pendida para o hombro esquerdo, pareceu-me outro quando o encontrei casquilho, elegante nas suas roupas talhadas nos melhores alfaiates cariocas, um anno depois, na capital da Republica.

Era acadêmico e estava cheio de alegria de viver . Escrevia e virá trabalhos seus aceitos entre “os que surgiam”, na Semana, de Valentim Magalhães. Estava bem “na quadra azul da mocidade”, de que tão sentidamente falou o poeta...

Moramos juntos por algum tempo e não foi essa a era de sua mais abundante produção. Tendo-se ensaiado nas danças, as noites vadias eram dedicadas as delicias choreograficas.

Depois, separamo-nos amigos, como havíamos vivido.

Esperava eu, então, que Agostinho Vianna encerrasse a carreira na profissão para que se preparara com tanto afinco e, decorridos mezes, perdemo-nos de vista.

Andamos em campos differentes, quando iniciei a vida pratica e pouco me seria dado dizer dessa produção anonyma que prodigalisou aos jornais que escreveu.

Mas de 1913 para cá, posso garantir, dia a dia, confabulei com uma das capacidades de jornalista mais fecundas e mais brilhantes que tenho conhecimento.

Operava milagres a sua produção omnimoda e interessante. As cartas que escrevia para a Folha, do Rio, ao lado da noticia completa, architectada com a pericia de um profundo conhecedor do metier, enfeixava o conceito ponderado do commentador ao par, dos acontecimentos e necessidades da vida contemporânea.

A guerra actual teve em Agostinho Vianna um dos seus mais constantes apreciadores. E os alliados nunca tiveram mais assíduo defensor. Multiplicava-se e repartia-se por seus assumptos. Era o Capitão Ess. dos artigos técnicos sobre coisas militares da actualidade, na conflagração européia; o G das apreciações sobre as atitudes das nações em fóco na sangueira horrível; o Ignotus das correspondências circunstanciais e, o que lhe falava mais caro ao sentimento de escriptor inexgottavel, o João Ranzinza das chonicas theatrais.

Nunca vi alguém amar com tão entranhada lealdade e dedicação mais constante, como Agostinho Vianna amou o jornal.

Quando em 1915 a sorte varia nos levou a habitarmos a mesma casa, no Rio, tive novamente ensejo de lhe acompanhar de perto os modos de existência.

No seu quarto modesto, a arca bojuda, em que conduzia as roupas, dum lado, o guarda-roupa, quase deshabitado, e sob uma janela, a mesa de escrever; a cama a uma banda, e o resto destinado aos montes de jornaes, do Rio e dos Estados do Brazil. Para os seus olhos de apaixonado, não havia periódico insignificante, nem pelo tamanho nem pela quantidade de matéria. Lia tudo. Assignalava a grandes traços azues ou encarnados, quando lhe parecia digno de nota. E dessa forma, elle, que, nestes últimos annos, não vi empunhar um livro, escrevendo ou falando, comunicava a impressão de um homem de larga e variada leitura sobre múltiplos ramos dos conhecimentos humanos.

Pobre amigo! Por amor do jornal, prejudicou a vida, trabalhando ate tarde em redacções de jornais cariocas, sem pedir recompensa outra que não fosse o direito de carregar folhas de varias origens para o silencio de seu lúgurio.

Deixou o Rio, volveu ao Pará, seguiu para Pernambuco e o organismo, minado, succumbiu.

Há um anno que isso foi. E de toda essa dedicação, de todo esse trabalho, capaz de formar volumes, que se reservou para a memória do operário incansável e consummado?

(Manoel Lobato - Folha do Norte 8 de Janeiro de 1918)